Dilemas e Extinção de Raças
Por Dr. Carmen L Battaglia
Tradução M.V. Maria Eduarda Bicca Dode
Versão original disponível em:
https://breedingbetterdogs.com/article/breed-dilemmas-extinction
“Nem todos os que vagueiam necessariamente estão perdidos”
Nenhuma raça parece estar livre de dilemas. Para alguns, começam com os conflitos que se propagam entre membros do clube ou criadores, que questionam um reprodutor ou os filhos por ele produzidos, na condição de portador de algum gene recessivo. Outros acreditam que é a falta de qualidade observada nos vencedores o número crescente de portadores de genes indesejáveis ou o aumento de doenças temidas. Seja o que for, quando os criadores se reúnem, os dilemas para sua raça geralmente dominam suas conversas. Mas, independentemente do tópico, as soluções cabem aos criadores e aos representantes/dirigentes de seus clubes. Eles têm o poder de mudar, criando a realidade de sua raça. Um olhar mais amplo sugere que tudo se resume entre escolher continuar no caminho da tentativa e erro ou estar disposto a tentar fazer a diferença.
Nas últimas três décadas, esportes com cães aumentaram de forma constante sua popularidade. Anualmente são realizados mais de 15.000 eventos que envolvem 1,5 milhão de expositores, além daqueles que participam como espectadores. Nesse ambiente, não é fácil compreender o porquê de tantas raças estarem entrando em um período crítico em seu destino. Os fatos mostram que, com esse tipo de avanço, também ocorre um aumento de criadores inexperientes e crescimento em problemas de saúde e conformação.
Análises de muitos problemas de raças sugerem que alguns de seus problemas mais importantes não são tão óbvios. Para alguns, é a falta de qualidade nos cães criados. Para outros, é a falta de habilidades necessárias para gerenciar e exibir os exemplares que eles possuem. Mas, em geral, a falta de treinamento e dos fundamentos de como criar e manejar os animais do plantel continua a persistir. Os cães que os criadores mantêm deveriam receber mais atenção, quando se considera que 60% dos melhores cães da maioria das raças não são de propriedade de seus criadores. Isso sugere uma falta nas habilidades necessárias para reconhecer os melhores filhotes quando eles ainda estão na ninhada.
Quando todos esses problemas são combinados, se produz o que muitos acreditam ser as principais razões para a redução na qualidade da raça e o declínio de pool genético. Tudo isso está acontecendo, apesar dos avanços na tecnologia e das melhorias que ocorreram nos testes de saúde e nutrição.
Essa falta de progresso pode ser atribuída a um problema fundamental: por mais surpreendente que seja, não é a falta de informação ou a vontade de agir que dificulta o progresso. É a persistência de crenças e atitudes ultrapassadas, baseadas no folclore e nos mitos. Segundo Padgett (1991), a maioria dos criadores continua acreditando que os seus cães são “geneticamente perfeitos“. Ele afirma que por causa do investimento de tempo e dinheiro, o criador não deseja que seu plantel seja avaliado e desmerecido. Por esses motivos, a maioria dos criadores evita falar sobre problemas quando eles ocorrem. Assim sendo, quando há a oportunidade de observar uma ou mais alterações nos animais do canil, se mantêm os resultados em segredo. Enquanto isso, os criadores informados trabalham sozinhos e isolados, causando pouco ou nenhum impacto em sua raça fora de seu próprio canil. Esse cenário parece produzir um dos maiores dilemas enfrentados pela maioria dos criadores e seus clubes.
Uma análise mais detalhada dessa situação sugere que a maioria dos problemas de uma raça está nas mãos dos proprietários das matrizes, porque estes controlam os acasalamentos, os filhotes gerados e a venda aos novos proprietários. Em suma, eles têm o poder e a influência para determinar a qualidade ou a falta dela. Detêm não apenas as chaves do pool genético, mas também o futuro de sua raça.
O que torna a solução deste problema tão difícil inicia com o que os criadores acreditam ser verdade, ou seja, existe uma atitude prevalente de que a maioria dos cães são geneticamente normais. Quando ocorre um filhote anormal ou um gene recessivo se expressa, a maioria omite. Aqueles que falam sobre seus problemas são considerados detentores de cães inferiores à média ou, talvez, até mesmo anormais. Como essas atitudes prevalecem e são transmitidas de um criador para outro, é fácil perceber por que os problemas e muitas doenças não foram eliminados. Como exemplo, foi relatado (Padgett) que o número médio de problemas de saúde na maioria das raças pode ser quatorze, o que não parece preocupar muitos clubes, mas essa estatística ganha mais significado quando são feitas comparações com raças específicas. Por exemplo, o pastor alemão tem pelo menos 7 problemas de saúde descritos como relevante para a raça, enquanto pequineses são conhecidos por ter 14 e os Beagles 3, o que é mais do que o dobro da média, mas significativamente menor que o índice mais alto, a raça Rhodesian Ridgeback com 58 (problemas identificados). Outros raças com alto número de defeitos são os Cocker Spaniels com 52 e os Buldogues com 44.
Nesse ambiente, não é surpreendente descobrir que os problemas da maioria dos criadores e de seus clubes não estão em atingir seus objetivos, mas em estabelecê-los. Como mencionado anteriormente, a raiz desses problemas pode ser encontrada na crença equivocada de que a maioria dos cães não possui genes recessivos indesejáveis. Após anos desse tipo de pensamento, o impacto em muitas raças tornou-se previsível.
Como ainda não foram desenvolvidas estimativas confiáveis para cada raça, os históricos de saúde e o comportamento do criador tornaram-se as melhores alternativas. Enquanto indivíduos que trabalham sozinhos não podem resolver problemas de raça, organizações como a AKC em conjunto com outros clubes nacionais da raça podem desenvolver programas capazes de fazer a diferença.
Usando novas tecnologias, ideias e programas de educação fortalecidos podem ser desenvolvidos. É especialmente importante que essas iniciativas atinjam os criadores principiantes que continuam a usar métodos desatualizados de tentativa e erro em suas criações. Para muitos, a expressão “análise de pedigree” permanece incompreendida. A menos que o iniciante obtenha ajuda, os problemas de raça piorarão e o número de portadores de genes recessivos indesejáveis continuará aumentando. À medida que a frequência multiplica, mais cães serão inferiores. Desse cenário surge o pior problema de raças. O primeiro começa por ocorrer repetidamente até prevalecer. Começa quando os criadores podem ser ouvidos dizendo: “é apenas mais um problema da raça”. Esse cenário, quando repetido ano após ano, serve como um sinal confiável de que os níveis de habilidade são perigosamente baixos. Por exemplo, há um número crescente de criadores que produzem filhotes de tão baixa qualidade que devem vendê-los em registros limitados ou em contratos de esterilização. Ambas as ações enviam um sinal para os compradores de que o filhote é de qualidade inferior. À medida que um número maior de criadores começa a vender filhotes dessa maneira, o número de cães registrados em sua raça diminui e seu pool genético é reduzido.
Esse problema está se tornando mais abrangente do que se pensava anteriormente, podendo resultar no desaparecimento de várias raças. Por exemplo, em 2001, havia 38 raças que registraram menos de 100 ninhadas no ano. A Tabela 1 mostra que houve apenas 4 exceções a essa tendência. Mais importante: houve 44 raças que registraram menos de 100 ninhadas por ano durante o período de cinco anos. Essa tendência de queda de cinco anos para registros de ninhadas aponta para outra questão. A chamada sobrevivência. Os dados sugerem que nos próximos dez anos, para algumas raças, há possibilidade de extinção .
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Ranking 2001
Raças 2004 2003 2002
2001
2000
1999
1998
1997
112
Saluki
84
79
80
63
67
113
Pastor Belga Tervuren
84
84
78
89
106
114
Pastor Belga
Groenendael
83
80
80
85
101
115
Flat-Coated Retriever
82
100
75
98
44
116
Petits Bassets Griffons
Vendeens
75
83
72
100
92
117
Bedlington Terrier
66
54
57
56
57
118
Welsh Springer spaniel
61
63
58
57
60
119
Griffon de Aponte de pelo duro
55
66
44
47
41
120
Pastor de brie
51
61
57
60
58
121
Cão d’água americano
49
45
57
62
68
122
Pequeno Cão Leão
49
44
37
24
35
123
Clumber spaniel
47
60
43
51
46
124
Coonhound preto e castanho
46
47
48
55
57
125
Pastor da anatólia
42
48
49
41
45
126
Puli
40
36
48
36
46
127
Pastor Polonês da Planície
40
38
28
0
0
128
Bull Terrier Miniatura
40
42
49
42
44
129
Kuvasz
35
48
49
59
84
130
Spinone Italiano
33
6
131
Spitz finlandês
30
27
30
27
39
132
Deerhound
28
28
27
27
33
133
Retriever de pelo encaracolado
27
25
35
31
28
134
Komodor
26
23
32
31
40
135
Cão de canaã
26
25
20
18
11
136
Field Spaniel
25
28
28
36
29
137
Cão d’água Irlandês
25
23
33
22
21
138
Greyhounds
25
30
24
32
29
139
Sealyham Terrier
24
28
21
17
28
140
Skye Terrier
24
23
25
38
31
141
Pharaoh Hound
23
19
16
20
19
142
Pinscher Alemão
23
143
Sussex Spaniel
20
16
21
22
16
144
Dandie Dinmont Terrier
20
33
38
30
33
145
Podengo Ibicenco
18
12
13
17
19
146
Plott Hound
18
35
30
8
0
147
Foxhound Americano
18
14
14
15
13
148
Harrier
11
6
6
10
11
149
Otterhound
8
7
2
4
9
150
Foxhound Inglês
7
8
5
7
6
2001
2000
1999
1998
1997
Total para 150 racas
461863
506727
527023
555964
564165
Tabela 1. Registro de ninhadas AKC 1997 – 2001.
O dilema do declínio de registros em uma raça sinaliza ainda outro sintoma, que talvez seja um problema ainda maior: o declínio da diversidade do pool genético. Vinte e três das 38 raças listadas na Tabela 1 mostraram um declínio constante nos registros e são candidatas a uma perda da diversidade do pool genético.
A AKC e seus clubes filiados gastam milhões coletivamente em pesquisas em saúde, destinadas a reduzir os problemas de saúde e portadores. Nesse ambiente, os problemas deveriam ficar menores e não maiores. No entanto, no caminho parece se ter quatro problemas que complicam o tema. Primeiro, a atitude generalizada de que a maioria dos cães são geneticamente normais, sem restrições, o que leva ao segundo, a tendência de evitar falar sobre problemas quando eles ocorrem. Terceiro, a falta geral de habilidades necessárias para criar os melhores cães ,e o quarto, que está relacionado aos três primeiros. A maioria dos clubes não estabeleceu suas metas e não possui um mecanismo que vinculem os resultados dos teses genéticos aos pedigrees. Esses quatro cenários provaram ser o mecanismo pelo qual as raças ocultam, em vez de resolver seus problemas. O efeito líquido é que os problemas aumentam junto com os portadores que persistem às custas do declínio de sua raça.
O desafio está no desenvolvimento de um mecanismo que possa expandir a base da educação, juntamente com a vontade de compartilhar informações. Dada a tecnologia de hoje, esses esforços estão bem ao alcance do AKC e de todos os clubes nacionais. O primeiro passo começa com o estabelecimento de metas e a concordância com a lista de problemas a serem abordados. O segundo envolve o desenvolvimento de um plano estratégico que inclui encontrar melhores maneiras de usar os resultados dos testes, além de métodos melhores para identificar os portadores de genes indesejáveis. Uma recomendação foi realizada no Relatório do Comitê AKC / DNA de 2002. Ele sugere que AKC forneça um link que reúna as informações de linhagem com os resultados dos testes. O terceiro passo requer um mecanismo que motive clubes e criadores. Uma abordagem foi incluir incentivos. Alguns dos motivadores mais eficazes foram títulos, certificações e prêmios. Todos provaram ser maneiras eficazes de motivar as pessoas. A seguir, estão alguns dos ingredientes conhecidos que podem ajudar a solucionar esses problemas:
1. Abrir cada programa para todos os criadores;
2. Oferecer títulos, prêmios e outras formas de reconhecimento / incentivos para quem alcançar o sucesso.
3. Desenvolver programas de educação continuada que incluem:
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modo de herança genética;
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estratégias de criação;
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análises de linhagem;
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avaliação de ninhadas e filhotes.
4. Fornecer um mecanismo que colete e distribua informações sobre cada problema.
5. Estabelecer um vínculo entre identificação positiva, resultados dos testes e os pedigrees.
6. Incluir suporte eletrônico: site & e-mail.
7. Fornecer relatórios e artigos prontos sobre o status de cada projeto com atualizações e histórias de sucesso:
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Lista de e-mails
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Comunicação on-line / chats
Nenhum programa é perfeito e sempre há espaço para melhorias. Dadas as tecnologias avançadas de hoje, essas etapas estão bem ao alcance dos interessados em resolver problemas de raça. É importante lembrar que a informação é poder e que aqueles que a acumulam, estudam e a organizam, podem, certamente, colher seus benefícios.
Referências
American Kennel Club, 2002 Board Committee Report on DNA, American kennel Club, 260
Madison Ave, and NY. NY.10060
Padgett, George A. Control of Canine Genetic Diseases, Howell House, New York, 1998.
Padgett, George, “Genetics I Introduction”, 1991 Beagle Review, Darcroft Publishing,
Wilmington, VT, Vol. 1, No. 1, Winter 1991, pg. 14-16
Teeling, Mary and Roethel, Cynthia, Editor, “Genetic Diseases, disease frequency and gene
frequency of the Rhodesian Ridgeback”, a Health and Genetics Seminar presented by
George A. Padgett, Michigan State University, Veterinary Medicine, 2001.
Sobre o autor
Carmen L Battaglia é Ph.D. e mestre pela Florida State University. Como arbitro, pesquisador e escritor do AKC, ele foi um líder na promoção da criação de cães melhores e escreveu muitos artigos e vários livros. Battaglia também é um popular em shows de TV e rádio. Seus seminários sobre criação de cães, seleção de reprodutores e escolha de filhotes foram bem recebidos pelos clubes de criação em todo o país.
Tradução
Maria Eduarda Bicca Dode, Médica Veterinária e Doutoranda em Ciência Animal pela Universidade Federal de Pelotas – UFPel. Criadora da raça Australian Cattle Dog pelo afixo Sentinela Farrapo desde 2007. Árbitra pela Confederação Brasileira de Cinofilia – CBKC.
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